Crise de divisas: Banco de Moçambique usurpa funções dos bancos comerciais no sector da saúde
A crise de divisas que se intensifica em Moçambique está a atingir sectores vitais como o da saúde, levando o Banco de Moçambique (BM), regulador do sistema financeiro, a adoptar medidas extraordinárias que estão a gerar desconforto entre os operadores do sector e os bancos comerciais.

Na semana passada, durante uma reunião com o Ministro da Saúde, Ussene Hilário Isse, os importadores que não conseguem adquirir medicamentos, equipamentos e material cirúrgico hospitalar por falta de divisas nos bancos comerciais foram orientados a canalizar todo o expediente, incluindo as facturas, à Central de Medicamentos. Este órgão, através da sua conta em moeda estrangeira domiciliada no Banco de Moçambique, poderá então efectuar directamente os pagamentos aos fornecedores estrangeiros, na sua maioria sedeados na Índia.
Esta solução, que contorna os bancos comerciais, representa uma ruptura com o funcionamento habitual do sistema financeiro, fazendo com que o banco central assuma funções operacionais de pagamento que tradicionalmente competem à banca comercial. O Banco de Moçambique, que alega não dispor de divisas para suprir os bancos comerciais, passaria assim a tratar directamente com os fornecedores, numa abordagem que preocupa os importadores e que poderá gerar disfunções graves no sistema.
A escassez de dólares no mercado nacional está a criar constrangimentos profundos aos operadores do sector farmacêutico, que reportam quebras severas nas importações durante o primeiro trimestre de 2025. A Associação dos Importadores e Produtores de Medicamentos de Moçambique (AIPROMEM) alerta que, se a situação persistir, poderá haver ruptura de medicamentos tanto no sistema público como no sector privado.
Em entrevista à TORRE.News, Mariamo Aly Hassane, presidente da AIPROMEM, revelou que, neste momento, os fornecedores internacionais estão a continuar a fornecer medicamentos com base em acordos de crédito com prazos de pagamento de até 90 dias, mas esse compromisso está em risco. “Se a situação prevalecer até os próximos meses, este ano e o próximo, não teremos medicamentos no país. A situação é crítica, temos que reconhecer”, disse.
Segundo a dirigente, embora alguns bancos estejam a tentar dar prioridade às importações de medicamentos através do parcelamento de facturas, a não emissão dos termos de compromisso está a comprometer todo o processo. “Neste momento, os bancos não estão a emitir os termos de compromisso. Mesmo as importações feitas a pós-pagamento estão a enfrentar dificuldades para o desalfandegamento porque não há termos de compromisso”, alertou Mariamo.
A AIPROMEM denuncia que os bancos comerciais têm receio de emitir esses documentos por não conseguirem garantir que conseguirão cumprir o prazo de 90 dias estabelecido com os fornecedores. Em alguns casos, os bancos apenas emitem os termos sob condição de que os importadores não façam qualquer pressão, caso o banco não consiga honrar os pagamentos — uma prática que revela o grau de desfuncionalidade do sistema actual.
A crise de divisas, no entanto, não afecta apenas o sector da saúde. Toda a economia nacional está sob pressão. O economista Egas Daniel, em declarações à TORRE.News, considera que o Banco de Moçambique está a recorrer a mecanismos que distorcem o funcionamento do mercado, e alerta que essa postura pode ter consequências cambiais graves. “O câmbio, por exemplo, é mantido através de pressões regulatórias. Pode perder-se o controlo e as variáveis atingirem níveis insuportáveis. Esse é o risco de o banco mover as variáveis a seu favor sem respeitar os fundamentos do mercado”, explicou.
Egas Daniel acrescenta que os bancos comerciais operam actualmente sob forte vigilância, incluindo nomeações regulares de inspectores por parte do Banco Central. “O medo passou a ser um instrumento de política monetária. O caso do Standard Bank, que em 2021 foi proibido de participar no mercado interbancário, é um exemplo claro da ousadia regulatória que o país vive”, afirmou.
A Confederação das Associações Económicas (CTA), que tem mantido um confronto directo com o BM, já veio a público alertar que as medidas para conter a inflação estão a agravar a escassez de divisas. Os bancos comerciais reportam um atraso acumulado de cerca de 500 milhões de dólares em facturas de importação, expatriamento de capitais e outras operações com o exterior.
Os efeitos são evidentes: queda na produção e volume de facturação, paralisação de projectos, aumento dos custos operacionais e retracção do investimento privado. A falta de divisas está a dificultar o pagamento ao exterior e a comprometer directamente a sustentabilidade dos sectores estratégicos, como o da saúde, que não pode esperar.