Guebuza foi um estratega e Nyusi um oportunista: O relato de Boustani sobre as Dívidas Ocultas
“É para que esta mentira não prevaleça que resolvi falar e colocar tudo em cima da mesa. Tenho uma carta datada de 14 de Janeiro de 2013, assinada pelo actual presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, onde valida os empréstimos. Tenho fotos de responsáveis moçambicanos a visitar o site, dezenas de cartas e emails onde os empréstimos são mencionados com total clareza”.
Jean Boustani, uma peça chave no esquema que levou Moçambique a contrair uma dívida de cerca de 2,2 mil milhões de dólares, foi detido a 1 de Janeiro de 2021, em Santo Domingo, na República Dominicana, acusado de crimes de conspiração para lavagem de dinheiro e conspiração para cometer fraude, envolvendo Moçambique.
Boustani, de 46 anos, nascido no Líbano, foi o principal negociador da Privinvest, uma empresa de construção naval fundada pelo falecido empresário franco-libanês Iskandar Safa, num projecto que visava a criação de segurança marítima para a Zona Económica Exclusiva (ZEE) moçambicana.
Tendo sido preso por 9 meses, julgado e absolvido pelo tribunal federal de Brooklyn, em Nova Iorque, Boustani publicou um livro intitulado: “A Armadilha - Assuntos Africanos: O Homem que Nunca Devia Ter Falado”, escrito com o jornalista do Le Point, Erwan Seznec.
A Detenção e as acusações
“(...) finalmente, um investigador disse-me que eu estava detido por ligação com Moçambique”, começa a descrição de Jean Boustani sobre a sua detenção, que diz ser injusta, pois considera nunca ter cometido nenhum crime em Moçambique, um país para o qual, explicou no livro, já tinha planos de fixar residência.
“Quando a comunicação social começou a falar sobre a 'dívida oculta' de Moçambique em 2016, a Privinvest tratou os rumores com desprezo. Sabíamos o valor do nosso trabalho e dos nossos equipamentos. Para nós, tudo isso era um absurdo”, escreve Boustani.
Para Jean Boustani e a Privinvest, como um todo, não faz sentido que, em 2016, o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, tenha começado a falar de empréstimos ocultos e equipamentos defeituosos, sendo que “é Filipe Nyusi [que] era Ministro da Defesa na altura em que os empréstimos em questão foram lançados e as entregas foram efectuadas”.
Nyusi e as comunicações ignoradas
“Ele sabe tudo! Foi muito fácil verificar”, diz Boustani, explicando que, quando surgiu o assunto das dívidas ocultas, chegou a fazer várias chamadas e enviar várias mensagens, incluindo cartas enviadas à Presidência da República, mas Filipe Nyusi não respondeu.
O libanês descreve ainda que, para fundamentar que não houve pagamento de subornos e que a dívida contraída por Moçambique nunca foi “oculta”, apresentou uma carta ao tribunal de Brooklyn, em Nova Iorque, que prova que Nyusi conhecia e validou os empréstimos.
“Tenho uma carta datada de 14 de Janeiro de 2013, assinada pelo actual presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, onde valida os empréstimos. Tenho fotos de responsáveis moçambicanos a visitar o site, dezenas de cartas e emails onde os empréstimos são mencionados com total clareza”, refere.
“Contudo, tenho o telemóvel do Filipe Nyusi: liguei-lhe dez vezes, mandei-lhe SMS [mensagens], ele nunca me respondeu. Até enviei uma carta à presidência no dia 18 de Janeiro de 2021, sem resposta”, diz, acreditando que “mais cedo ou mais tarde ele [Filipe Nyusi] terá que dar explicações”.
Guebuza foi um estratega
Sobre Armando Guebuza, então presidente de Moçambique aquando da contratação da dívida, Boustani diz que nunca foi um homem ingénuo e sempre teve consciência dos riscos que os recursos naturais que acabavam de ser descobertos no norte de Moçambique podiam trazer ao país.
“Armando Guebuza não foi ingénuo (...) tinha consciência dos riscos induzidos pela pirataria e sabia muito bem que os recursos de Moçambique atrairiam a cobiça”, escreve Boustani.
Para evitar tal risco, a solução, portanto, passava por garantir a segurança marítima. Tal segurança, porém, devia ser implantada pela Privinvest, que ofereceu a Moçambique um kit de segurança marítima “chave na mão”, composto, entre outros, por “um sistema de vigilância por satélite, dois estaleiros completos em terra (um em Pemba e outro em Maputo)”.
Aos olhos de Guebuza, segundo Boustani, o custo do equipamento da Privinvest era, na verdade, “o de um prémio de apólice de seguro”.
Guebuza afirmou que o projecto de proteção da Zona Económica Exclusiva era estratégico e que, por isso, “ninguém, nem eu nem qualquer outro funcionário moçambicano, está autorizado a receber um cêntimo [de subornos ou comissões] para avançar como deveria. Se alguém te pedir dinheiro, recuse e venha falar comigo”.
A Conspiração americana
O valor na ordem de cerca de 2,2 mil milhões de dólares foi contraído por três empresas estatais, nomeadamente a EMATUM, MAM e Proindicus, com garantias soberanas, o que significa que, no caso de incapacidade na liquidação, a dívida passava a ser assumida pelo Estado moçambicano.
Apesar de tudo, na óptica de Boustani, os níveis insuportáveis da dívida contratada pelas três empresas surgiram com a queda acentuada nos preços dos hidrocarbonetos, causada pela revolução do gás de xisto, nos finais de 2014, significando que, contra todas as expectativas, os EUA voltaram a ser um exportador mundial de hidrocarbonetos.
“As consequências para Moçambique são graves”, diz Boustani. O país, a dado momento, não conseguia mais pagar a dívida, e quase na mesma altura em que o país atravessa essa crise, o poder em Moçambique foi assumido por Filipe Nyusi, um homem que Boustani considera “inferior”.
“O país atravessava tempos económicos difíceis. Armando Guebuza deu lugar a um homem inferior, Filipe Nyusi”, escreveu Boustani, numa passagem que pode ser consultada na página 61.
Com os prazos a apertarem e para renegociar a situação da dívida, Nyusi “foi convocado a Washington. Ele estava em uma posição fraca e procurando ajuda”, detalha Boustani.
Sobre essa ida a Washington, Boustani diz preferir dizer “que Washington, com o alicerce do Fundo Monetário Internacional (FMI), aproveitou uma oportunidade” para afundar ainda mais a economia de Moçambique, que estava no caminho de se tornar aquilo que ele mesmo chamou de “Qatar de África”, em termos de produção de hidrocarbonetos.
Contudo, apesar de todo o papel desempenhado por si na contratação das “dívidas ocultas”, Jean Boustani diz não ter feito mais senão ajudar um país africano em vias de desenvolvimento, no caso Moçambique, que precisava proteger a sua costa de muitos crimes marítimos, incluindo pirataria.
Ele vê-se, por isso, como um “mercenário” ao serviço de Moçambique, capturado pelos americanos, “inimigos” do desenvolvimento africano.