"Trabalhamos como escravos de portugueses": Um relato de moçambicanos em Portugal

As promessas de emprego e as perspectivas de melhores condições de vida são os maiores atractivos que levam à deslocação massiva de moçambicanos para Portugal.

Julho 9, 2024 - 08:49
Julho 9, 2024 - 08:56
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"Trabalhamos como escravos de portugueses": Um relato de moçambicanos em Portugal

Actualmente, há moçambicanos em situação de miséria em Portugal, um país europeu com pouco mais de 10 milhões de habitantes, número que tende a baixar devido às baixas taxas de natalidade.

A ida de moçambicanos a Portugal deve-se, entre outros factores, às crescentes taxas de desemprego em Moçambique, sendo Portugal uma porta de entrada para o continente europeu, visto como um campo de oportunidades.

Ainda assim, Portugal é um dos países mais pobres da Europa, cujo produto interno bruto per capita, expresso em paridades de poder de compra, foi 78,7% da média da União Europeia em 2022, facto que mantém Portugal no vigésimo lugar da lista dos países com maior nível de riqueza per capita.

De acordo com o Observatório da Emigração, cerca de 850 mil jovens, ou 30% das pessoas com idade entre 15 e 39 anos, saíram de Portugal por conta de impostos, sendo que, como medida, o governo português aprovou a redução de impostos para evitar que os jovens deixem o país.

A desilusão de uma realidade que contrasta com as expectativas

Nas estatísticas de moçambicanos em Portugal está Jorge Maurício, moçambicano de 28 anos que reside em Portugal desde finais de 2023, com quem a TORRE.News manteve contacto. Maurício diz ter-se deslocado a Portugal a convite de um amigo, que já se encontrava lá desde inícios de 2022, para ocupar uma vaga de emprego no sector hoteleiro, o que viu como uma oportunidade de fazer a vida além-fronteiras.

"Mas o que estou a ver aqui é totalmente diferente do que eu esperava. Trabalhar em Portugal não é o que muitos pensam e acredito que poucos sabem o que, na verdade, se passa aqui", disse, referindo-se às precárias condições de vida e de trabalho a que diz estar submetido.

Trabalhando numa instância de restauração, diz que, inicialmente, tinha acordado com o patronato trabalhar 9 horas por dia, das 07h às 15h, mas tal deixou de acontecer ainda nas primeiras semanas de trabalho.

"Alegam que não basta que a hora chegue, é preciso, primeiro, terminar as actividades. Mas o problema é que chegamos a sair às 21h ou, às vezes, às 22h", contou.

Maurício vive a cerca de 20 quilómetros do seu posto de trabalho. "Pelo menos se nos dessem transporte para levar trabalhadores, valia a pena. Mas isso só existe para os chefes e, talvez, para alguns colegas portugueses", lamentou.

Outro calvário com que se debate tem a ver com as remunerações em relação às despesas correntes. "Se o salário compensasse, diríamos que vale a pena", desabafa.

Recebe 860 euros - cerca de 56 mil meticais (câmbio do dia), mas gasta quase metade com a habitação [vive num quarto de aluguer], restando outras despesas como luz, gás e transporte.

"Às vezes, parece que estamos a trabalhar para vivermos e nos alimentarmos. Pouco sobra até para mandar para as nossas famílias", lamenta o jovem, que tem uma noiva em Moçambique e dois filhos, que actualmente vivem na casa da sua mãe.

Manuel Domingos, de 33 anos, também está desiludido com a imigração para o continente europeu na busca de melhores condições. Contou à TORRE.News que está em Portugal há mais de dois anos, mas a sua vida não tem registado o progresso idealizado quando decidiu sair de Moçambique, a convite do seu patrão que tem uma empresa de construção civil.

"O principal desafio é o tempo de trabalho que não combina com o que recebemos e, pior, com as despesas que precisamos fazer", desabafou, sem revelar o salário. "Acho que as casas estão muito caras e para quem precisa poupar, não é fácil", afirmou.

"Portugal é dos portugueses, voltem para os vossos países"

Enquanto cresce a onda de pessoas em busca de oportunidades em Portugal, principalmente imigrantes de países da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), como Moçambique, Angola e Brasil, surge a preocupação por parte dos cidadãos portugueses que não vêem esta corrida com bons olhos.

Em um vídeo nas redes sociais, que a TORRE.News teve acesso, um português insurge-se contra os imigrantes, convidando-os a regressar e investir nos seus países, sob o pretexto de que "Portugal é para os portugueses".

"Esta mensagem é dirigida aos povos imigrantes que, actualmente, estão a entrar em Portugal de forma absolutamente copiosa. Nós não somos vossos inimigos, também não sentimos que vocês sejam nossos inimigos.

Mas o ritmo com que vocês estão a entrar em Portugal e a forma como se estão a estabelecer (...) leva a que nós, os portugueses, estamos profundamente preocupados", disse o cidadão.

Acrescenta, "percebam uma coisa, Portugal é dos portugueses e vai continuar a ser dos portugueses e a maioria de vocês vem de países muito maiores que Portugal [caso de Moçambique] e muito mais ricos (...) vêm de países com um potencial muito maior que Portugal.

Portanto, nós não entendemos a razão pela qual vocês estão a estabelecer-se em Portugal". "Voltem para os vossos países, voltem para as vossas famílias, para as vossas mulheres e invistam nos vossos países, porque Portugal é dos portugueses", concluiu.

Escravizados por estarem à margem da lei

A questão contratual é um dos factores que mais concorre para a precariedade das condições de vida dos moçambicanos em Portugal. O advogado Victor da Fonseca explicou à nossa reportagem que, em caso de incumprimento dos termos contratuais, como o aumento de horas de trabalho, os cidadãos podem contactar os tribunais laborais para reportar a situação.

O problema, segundo o advogado, é que muitos destes cidadãos possuem vistos caducados e, por isso, não têm possibilidade de recorrer às instituições de justiça para expor as injustiças a que são sujeitos.

"Se, por alguma eventualidade, essas pessoas estivessem numa condição legal naquele país, teriam condições materiais e jurídicas para poderem reclamar junto ao ministério de tutela, ao tribunal laboral ou ao consulado moçambicano em Portugal", considerou.

Acrescenta que, uma vez desprovidos desses requisitos, as pessoas acabam sendo escravizadas pelas condições de estadia no país. Fonseca alerta que, caso um cidadão estrangeiro submeta uma queixa sobre maus tratos ou más condições de trabalho, o estado português pode ser sancionado por violar os direitos fundamentais dos trabalhadores por instituições internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Portugal aperta o cerco

Do ponto de vista político, Portugal, que tinha aberto espaço para obtenção de visto para imigrantes através de manifestação de interesse (uma medida em vigor desde 2017), recuou e, segundo as novas regras, anunciadas em Junho último, só pode obter visto de trabalho quem tiver um contrato de emprego.

Este cenário pode ser o reflexo daquilo que alguns deputados portugueses, como André Ventura - do CHEGA -, defendem, alegando que pode criar um caos na Europa, numa situação em que muitos imigrantes só se deslocavam sem condições mínimas de habitação.

Actualmente, estima-se que cerca de 25 mil moçambicanos vivem em Portugal, num universo de aproximadamente 800 mil imigrantes no país, número que duplicou quando comparado a uma década atrás.

Cerca de 14% dos que pagam impostos são imigrantes, contribuindo com mais de 1,6 mil milhões de euros à economia em 2022. Embora os imigrantes façam contribuições significativas para a economia portuguesa, o Observatório da Imigração admite a possibilidade de estarem envolvidos em trabalhos precários e salários muito baixos.

De acordo com estatísticas recentes do EUobserver, as rejeições de pedidos de vistos para a Europa geraram um total de 130 milhões de euros (140 milhões de dólares) para os serviços de imigração europeus em 2023, em comparação com 105 milhões de euros (113 milhões de dólares) em 2022.